entretanto e tão pouco...

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Migalhinha

Volta meia volta Migalhinha sentava-se no parapeito da janela para ver o jardim. Ela gostava muito de ver a azáfama daqueles seres pequeninos que andavam para trás e para a frente todo o dia. Pareciam sempre com tanta pressa mas mesmo assim parávam sempre por breves instantes para se cumprimentar uns aos outros. Era grande a atracção dela pelo seu mundo e vezes sem conta Migalhinha desejou ser uma daquelas formiguinhas. Mas não era! Não era uma daquelas formiguinhas porque Migalhinha perdeu-se muito nova e foi dar a um açucareiro esquecido numa casa abandonada onde sempre viveu alegremente. Não precisava de andar de um lado para outro para comer. Não precisava de guardar reservas para o Inverno. Para ela nem sequer havia Inverno. Podia ocupar o seu tempo em brincadeiras com alguns amigos que tinha conhecido. Podia passar horas a observar o carreiro das formigas. E assim vivia feliz.

Um dia um bicho-de-conta perguntou-lhe porque é que ela não se dava com a família e Migalhinha chorou porque não conhecia a sua família. Explicou ao bicho-de-conta que se tinha perdido e que sempre tinha vivido ali naquele açucareiro. Migalhinha chorou ainda mais quando o bicho-de-conta lhe disse, admirado, que a família dela morava mesmo ali do lado de fora da casa e que passavam todos os dias à frente da janela. Foi a correr para a janela e chamou pelas formigas, anunciando-se, comovida, como uma formiga também. Mas a família não a recebeu com o mesmo entusiasmo. Não reconheceram as suas pernas gordas da vida sedentária que levava, não sentiam o mesmo cheiro do suor no seu corpo... Migalhinha não podia ser uma formiga. Ser formiga não era só nascer formiga... era participar nas actividades familiares, era correr aquele carreiro, dia após dia, carregando comidinha para levar para os mais novos, era fortalecer os laços familiares trocando sempre uma palavra com as outras formigas no carreiro, partilhar com elas onde tinha encontrado comida, saber as novidades e mandar beijinhos para os pais. Ser formiga era fazer parte da família e para fazer parte da família era preciso ser formiga!

Migalhinha voltou para o seu açucareiro. Afinal não era uma formiga. Também... nunca tinha sido por isso que diferença fazia? Queria acreditar que podia continuar com a sua vidinha pacata e descontraída mas não conseguiu. Já não sabia ser feliz. Faltava-lhe ser formiga. Pior ficou quando a Maria-Café lhe disse que um dia podia acontecer alguma coisa ao seu açucar. "Invejosa!", pensou... mas a semente do medo ficou no seu peito e foi crescendo e crescendo. Migalhinha tinha de aprender a ser formiga. Agora observava o carreiro todos os dias, concentrada a tentar perceber como era ser formiga. Tomava notas, pensava, pensava e pensava. Olhava, suspirava e não percebia nada. Só via formigas para cá e para lá. Umas carregavam comida outras não carregavam nada e então Migalhinha começou a tentar andar de um lado para o outro assim todo o dia também, mas cansava-se muito e nem sequer via o propósito. Afinal o seu açucareiro não parecia ter diminuido minimamente desde que se lembrava. E desistia.

Mas a tristeza não a deixava em paz e passava dias a pensar como poderia fazer para ser formiga. A pensar porque tinha tido aquela sorte e porque não podia esquecer essa coisa de ser isto ou aquilo... que importância tinha? Era tão feliz antes de saber que as formigas eram a sua família. Tão feliz quando não pensava se o seu açucareiro podia ou não durar a vida toda. Convencia-se que não queria voltar para a sua família para poder encontrar esperança de felicidade. Mas não dava. Então lá ia ela de novo andar o dia todo para ser uma formiga. Dias e dias, semanas, meses, tentava, desistia, tentava, desistia mas lá foi ganhando mais músculo e perdendo algum peso e já aguentava mais um bocadinho. Chegou uma altura que Migalhinha já conseguia andar todo o dia e começou a transportar coisas. Mas as suas costas não aguentavam o peso. Não tinham sido feitas para aquilo. Era a morte de um sonho!

Migalhinha já não aguentava mais desistir e tentar e desistir. Andava tão triste, tão triste que dava por si a olhar para aquele buraco por onde escorria a água que pingava da torneira. Sempre tivera medo daquele lugar... uma vez escorregou e foi por pouco não foi por ali abaixo levada pela água. E depois para conseguir sair daquele sítio branco e liso foi horrível, só quando o vento ali deixou cair uma folha é que Migalhinha consegui trepar cá para fora. Não! Não podia cair ali outra vez! "Vou ser formiga! Agora é que vai ser! Não vai haver nada que me páre!" Mas o seu entusiasmo acalmava quando as dores de costas apertavam e o buraco da água voltava a chamar por ela. Às vezes voltava renovada de coragem e determinação, às vezes triste e desamparada, às vezes nem sabia, mas foi voltando a tentar.

Agora mais forte e habituada ao trabalho duro, várias vezes tinha desejado ir procurar as outras formigas, mas o medo de uma nova rejeição impedia-a e continuava a treinar e a treinar e a desejar e a chorar. Migalhinha sabia que ser formiga era mais do que andar de um lado para o outro a carregar comida todo o dia. Ela olhava e tentava perceber mas não sabia o que as formigas faziam quando desapareciam na curva do caminho ou quando se enfiavam naquele buraquinho na terra, mesmo no meio das raízes da árvore grande do jardim. Certamente seriam coisas difíceis, coisas que Migalhinha não tinha preparação para fazer e ela nem conhecia ninguém para pedir ajuda. Não tinha visto um sorriso convidativo na cara de nenhuma daquelas criaturas fabulosas que tanto desejava.

O medo mostrou-lhe outros caminhos... Se o seu problema era poder ficar sem comida de um dia para o outro, podia começar por aprender a procurar comida. Sozinha, não tinha de prestar satisfações a ninguém e se falhasse não haveria olhares reprovadores, comentários antipáticos ou mesmo represálias físicas. Ninguém a podia expulsar se ela não fazia parte da família. Era isso! Ia ser formiga sozinha! Explorar os cantos à casa, encontrar comidinha, guardá-la e pronto! Para que é que precisava das outras formiguinhas?

O salão grande onde o açucareiro tinha ficado esquecido, no canto de um aparador, era o seu mundo. Conhecia cada milimetro quadrado de chão, das paredes do tecto. Até já tinha ido brincar para o candeeiro... Não gostava muito de ir para trás das cortinas, onde era escuro e estava cheio de teias de aranha. No salão grande não havia comida em mais lado nenhum, sabia isso perfeitamente. Tinha de ir além daquelas paredes! Não havia problema! Era só colocar uma pata à frente da outra e mexê-las!

Mas para onde ir primeiro? Havia tantas possibilidades... as ranhuras das portas, as janelas, o buraco no estuque do tecto, vários túneis por baixo dos roda-pés... Para o lado do jardim não ia porque não queria que a vissem. Tinha vergonha. Tinha medo de fazer má figura e nem sabia porque isso era tão importante se já tinha decidido viver sozinha. Migalhinha ficou paralizada a olhar à volta sem saber para onde se virar. Chorou e olhou e pensou e sentou-se a chorar e olhar. Tinha de decidir para onde ir mas não tinha dados que a orientassem. Estava tão desesperada, tão perdida. Nunca poderia saber qual era a direcção certa, mas não podia falhar porque já estava a ficar velha e cansada. De vez em quando levantava-se para ir para um lado qualquer, arriscar uma direcção alietoriamente, que devia ser melhor do que estar ali a lamentar-se da sua sorte, mas as suas pernas não lhe obedeciam quando as mandava andar e voltava a sentar-se. E dias passaram e semanas correram e meses voaram. Cada vez mais triste, velha e cansada Migalhinha continuava a rotina de desistência/tentativa. O buraco da água era a sua companhia dos maus momentos e parecia cada vez mais o seu destino cair por ali abaixo.

Um dia decidiu! "Vou por ali e não me importa se é aquela a direcção certa. Não posso continuar aqui parada!" Olhos bem abertos, coração aos pulos e lá foi ela! Pata aqui, pata ali, cheia de determinação e coragem. Pelo menos enquanto não chegou à soleira da porta onde as suas pernas paralizaram mais uma vez. O que estaria do lado de lá? E se ela se perdia? E se fosse um precipício ou um local cheio de bichos maus? E Migalhinha voltou a correr e a chorar para o açucareiro. Nunca iria conseguir! Afinal talvez fosse melhor procurar a sua família.

Caso alguém ainda esteja a ler e queira saber o resto da estória de Migalhinha, não vou poder corresponder a esse desejo. Migalhinha nos anos seguintes foi fugindo ora para a família, ora para o seu plano de viver sozinha, ora para o ralo do lavatório. Quando tentava ir para um lado o pânico instalava-se e então resolvia que o melhor caminho afinal devia ser o outro. Aprecebendo-se disto, tentou ir atrás do que fosse realmente melhor para si, e não se deixar moldar mais pelo medo. Mas tantos eram os argumentos que tinha engendrado quer para uma opção, quer para a outra, que não havia como saber afinal de contas qual era o seu destino. E todos os dias Migalhinha lamentava o dia em que tinha conhecido o bicho-de-conta!

domingo, janeiro 15, 2006

Violada, fodida ou qualquer coisa parecida

Começava sempre pelo olho esquerdo que era mais fácil de pintar. O rímel, o lápis, e outras coisas que nem sabia o nome. Vestia a pele de predadora da noite mas acabava sempre por ser Maria a comida. Era a solidão que lhe abria a porta dos bares e discotecas e era a vergonha que a embebedava. Era a falta de um abraço, de um olhar meigo, de carícias sentidas e do amor que lhes segue. Maria queria ser amada mas não sabia. Só sentia desejo, um desejo perturbador que lhe baralhava as ideias e que a levava a cair sempre no mesmo erro, o de pensar ser o sexo o que mais lhe fazia falta. Maria pensava: "... para conversas e abraços tenho os meus amigos, o que eles não me podem dar é sexo, prazer carnal, orgasmos". Às vezes, muitas vezes, as suas mãos percorriam o corpo e tentavam substituir o que ela pensava que queria mas mais cedo ou mais tarde era num qualquer corpo mais ou menos estranho que Maria procurava a felicidade. Saía para comer. O desejo nem a deixava lembrar-se que não conseguia sentir prazer. Queria tanto sexo que nem sabia que não gostava. E Maria acreditava que tudo o que não podia acontecer era a notícia correr que ela não prestava e então fazia tudo o que sabia para dar prazer, garantido mais vítimas disponíveis para a próxima caçada. Maria violava-se mas ficava sempre muito admirada por não sentir prazer e assim ia continuando insatisfeita, insaciável, fechada naquele ciclo de desespero criado pela ilusão de ver a saída num olhar de desejo com bandeiras de prazer.

terça-feira, agosto 09, 2005

Entretanto e tão pouco

O que é que interessa se estava Sol ou se as núvens encobriam a Lua?
Que diferença faz ser Sábado, Terça ou Quarta-feira?
O que é que muda se eu estava de jeans ou se estava nua?
O que é que importa se foi em Nova iorque ou na Cova da Beira?
Se devorávamos banquetes à luz das velas?
Se mendigávamos migalhas pelas ruelas?
O que é que importa? Tudo? Nada?
Diz-me tu... estou baralhada!

quarta-feira, julho 27, 2005

Catarina partiu

Nada sugeria que Catarina fosse mudar de país... Nunca falara disso com ninguém, não tinha ido às embaixadas, não tinha procurado informações na net, nem sequer se tinha despedido do seu actual emprego. O trolley e a mochila tão pouco indicavam uma ausência prolongada... Mas Catarina partiu... Nunca sonhou com o que encontraria pela frente, não valia a pena, nunca poderia imaginar o que a esperava e nem sequer estava segura que realmente partiria e de qualquer maneira nunca tinha muito tempo para dedicar aos sonhos... Catarina não sabe o que é que aconteceu mas um dia fez as malas e partiu para um país diferente. Catarina nunca voltou... Não voltou para casa onde tinha uma família que sempre a amara. Não voltou para o emprego que a tia garantia mesmo depois de desaparecer por 3 anos. Não voltou para os amigos... A verdade é que Catarina não podia voltar. Algo dentro dela continuava a amar a família e os amigos exactamente com a mesma intensidade mas Catarina tinha desaparecido naquele dia em que partiu com as malas e nunca mais voltou.

Passados 3 anos foram buscar o seu corpo ao Aeroporto. O corpo reconhecícel de Catarina.

-"Precisava de mudar, mãe... desculpa ter-te fugido. Nada me parecia suficientemente longe para escapar aos tentáculos que me estavam a sufocar"

-"Quais tentáculos meu amor? Se precisavas de ajuda... nós nunca te faltámos... Anda, vamos para casa. Arrumei o quarto mesmo a teu gosto... e fizémos o teu jantar preferido. Vais descansar um bocadinho e depois vamos jantar. Convidei as tuas amigas Sónia e Isabel. Tinha pensado fazer uma grande festa mas imaginei que viesses cansada... Podemos fazer-te a festa de boas vindas no Sábado, já falei com a Ju e com a Leonor, estavam tão preocupadas contigo... elas vão fazer aquele salame de chocolate que tu adoras e a tua tia Ju disse logo que estava a contar contigo para a edição do próximo mês da revista... sabes que podes sempre contar com a família... mas não te preocupes que eu pedi que te deixasse descansar uns dias, deves vir tão cansada..."

quinta-feira, julho 21, 2005

Conchinha

Enquanto os pés sentiam a areia quente passar pelo meio dos dedos, a espinha contorcía-se involuntariamente sempre que caía aquele corpo moreno no seu campo de visão... o sal a queimar e o sol a mostrar um a um cada pêlo do seu peito. Quando os lençois estavam em guerra com o sol era aquela visão o argumento perfeito, absolutamente e deliciosamente perfeito, que ditava o destino do dia, deixando abandonados os lençois amarrotados e lá ía ela feliz para a praia... Nunca quiz nada além daquela saborosa contemplação. Não chegava nem perto de amor platónico, era só bom olhar, lamber o sal, apertar os músculos, deitar uma barriga sobre a outra ou deixar a barba dele arranhar-lhe as costas e gemer baixinho, sem que os engenheiros, que à sua frente erguiam um fabuloso castelo, se apercebessem da luxúria dos seus sonhos. Sentia que a indiferença do seu olhar estava em mutação e a cada novo encontro apareciam curiosos os pensamentos dele a espreitar pela menina dos olhos julgando-se ocultos na sombra negra em que viviam. Ela corava... dáva-lhe meio sorriso e baixava os olhos e ficava a rir-se para aquela conchinha que tinha apanhado no fundo do mar com a qual as mãos brincavam distraidamente. Perguntou-lhe se ele ainda a olhava e quando a conchinha corou ela percebeu que ele se agachava atrás de si... "deixaste cair isto... podia perder-se na areia..." e naquele preciso momento o vento enlouqueceu e um furacão levou-os na palma da mão, muito apertados um contra o outro, até uma outra praia, deserta e quente. A conchinha tinha ido de boleia bem guardada dentro da mão dela bem guardada dentro da mão dele e estava muito feliz. Sempre gostara de viajar. Sempre gostara de ser apanhada, namorada, só não gostava de ser levada para casa e esquecida... anos e anos sem ser olhada, tocada, sem o cheiro das algas e sem poder brincar com as ondas e os raios de Sol. Ele não sabia que ela guardava dentro da mão aquela conchinha mágica que tinha atirado ao mar nessa manhã depois duma longa conversa com os seus dedos...

quarta-feira, julho 20, 2005

entretanto

...e quando o muito é nada e o Sol é tudo mas agora é noite... digo que te amo Lua!